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terça-feira, 30 de outubro de 2007

Notas acerca das reflexões agostinianas sobre a natureza do Tempo

A DEGRADAÇÃO MORAL DO TEMPO:
Leandro Duarte Rust*
Aurelius Augustinus nasceu em Tagaste, cidade do norte da África, no ano de 354. Estudou em Madaura e Cartago, lecionou em Roma e Milão, onde descobriu o neoplatonismo1 e se converteu ao cristianismo. Regressando à África, foi consagrado bispo de Hipona e, desde então, aquele que outrora fora adepto da seita herética dos maniqueus,2 tornar-se-ia um incansável defensor da fé cristã, sendo posteriormente considerado um dos maiores pensadores de todos os tempos do cristianismo. Agostinho morreu em Cartago em 430, enquanto a cidade era invadida por exércitos vândalos, um dos povos germânicos que integraram-se ao Império Romano através da migração ou invasão a partir de fins do século IV. Entre os anos 398-399, Agostinho escreveu sua Confissões, obra autobiográfica marcante na história do pensamento doutrinário cristão. No décimo primeiro livro da obra deparamo-nos com esta inquietante indagação: "Que é, pois, o Tempo? (...) Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar (...) já não sei". Assim, o bispo de Hipona sintetizava as dificuldades encontradas na tentativa de definir o Tempo, entretanto, apesar de tais dificuldades, nos próximos mil anos estas reflexões seriam insistentemente retomadas pelos eclesiásticos medievais sempre que tentavam definir o movimento temporal. No pensamento de Agostinho, o Tempo foi visto como tendo sido criado como qualquer animal, planta e mesmo o homem. Seria uma criatura, um "ser" como todos os demais; e como tal, tendo um princípio teria igualmente um fim, uma morte. Todavia, para o bispo de Hipona, o Tempo era um ser marcado por uma característica particular: sua existência fragmentada. Isto é, os elementos que o compõem – passado, presente e futuro – seriam descontínuos entre si, pareciam isolados, incomunicáveis. Vejamos: de acordo com o bispo de Hipona, o passado já não existe mais, pois já se sucedeu, deixou de existir; o futuro, uma vez que ainda não veio, ainda não aconteceu, também não existe; e quanto ao presente, este não passa de um ponto de Tempo sem nenhuma duração, pois na tentativa de situá-lo, cada hora poderia ser dividida em momentos, cada momento em instantes, cada instantes em parcelas ainda menores... E assim chegaríamos a uma partícula tão ínfima, tão efêmera e passageira, cuja duração tornava-se insignificante, irrelevante. O Tempo agostiniano, por ser fragmentado, parece indefinível, inapreensível; como se a condição de sua existência fosse, paradoxalmente, cessar de existir, não mais existir. Esta existência parece uma perpétua fuga, um permanente desaparecimento. Eis o Tempo com o qual se digladiou Agostinho, simultaneamente evidência e mistério: algo que somente se deixa vislumbrar ocultando-se, que só se entrega em sua perda; todos o reconhecem, mas ninguém o vê cara a cara. Daí, o sentido da interrogação citada acima. Agostinho concebeu a natureza do tempo, portanto, como um nada entre dois nadas.ra Agostinho o Tempo imprimia em tudo o que a ele estava submetido – isto é, tudo o que não se encontrava na eternidade celestial – suas qualidades. Portanto, a vida de todos os seres tornava-se uma perpétua fuga, um permanente desaparecimento que culminaria no falecimento. Cada instante temporal era tido com um agente causador de morte, afinal "... esta vida não passa de corrida para a morte. Que outra coisa se faz em cada dia, em cada hora e em cada momento até que, apurada a derradeira gota da vida, se completa a morte que se ia operando...". O movimento temporal tornava-se, desta forma, a fonte da fragilidade de tudo o que era vivo, através de sua sucessão todas as criaturas tornavam-se perecíveis, passageiras, transitórias. O Tempo tornou-se o cúmulo de uma tristeza que afligia o espírito de Agostinho: ao tornar a vida breve, limitada, incompleta, a sucessão temporal tornava-a desprezível, efêmera, de importância apenas relativa. Ao perceber o Tempo como um causador de degradação e humilhação da vida, o bispo de Hipona atribuía-lhe simultaneamente atributos morais: a sucessão temporal aparece revestida por uma reputação extremamente má; de classe inferior à eternidade, sua natureza mostra-se implacável e perversa. Para Agostinho tudo o que era dominado pelo Tempo – ou seja, tudo o que é terreno, carnal – deveria ser desprezado, renunciado. Em suma, Agostinho expressava uma degradação moral do Tempo. Estas reflexões agostinianas legaram à Idade Média uma estreita relação entre temporal, carnal, terreno, mortal e decadente. Justificava-se um dualismo entre Tempo e Eternidade que se refletia no contraste entre a carne e o espírito, entre o pecado e a salvação, e, assim, encorajava a rejeição ao mundo. O movimento temporal expressava-se através das imagens da doença, do envelhecimento, do enterramento progressivo, da esterilidade, da cegueira, da obscuridade...
Notas:* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ.
1-Doutrina filosófica cujos adeptos mesclavam idéias do misticismo oriental helenista e de outras escolas filosóficas - como o pitagorismo e o estoicismo - ao legado do pensamento de Platão. Este sistema filosófico conheceu três fases distintas: a Alexandrina (séc. II-III), tendo em Plotino o principal expoente, a Síria (séc. IV-V), iniciada por Jâmblico, e a Ateniense (séc. V-VI), representada por Proclo. Uma das idéias comuns aos neoplatônicos era que o mundo espiritual da razão, habitado pelo Absoluto inalcançável, prefeito e imaterial (o Uno), governava o mundo material e imperfeito dos homens, o qual mostrava-se um pálido reflexo do primeiro.
2- Doutrina fundada por Mani no século III, na Pérsia, que se espalhou rapidamente pelo Egito, Síria, África do Norte e Itália. Eis alguns princípios elementares: desde toda eternidade existem dois princípios, o do bem e o do mal. O primeiro se chama Deus e domina o reino da luz, o segundo chama-se Satanás, rei das trevas, a luta incessante entre ambos rege o Universo. A matéria é a portadora do mal e o espírito a fortaleza do bem.
Para saber mais
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1990. (Parte II).
___. Confissões. São Paulo: Abril S/A., 1975.
BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha. Visão histórica de um cristão romanizado sobre o final do Império Romano: Agostinho de Hipona. Cadernos de História. Rio de Janeiro, n.4, p.17-24, 1987.
COMTE-SPONVILLE, André. O Ser-Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
GILSON, Etienne & BOEHNER, Philotheus. História da Filosofia Cristã. Petrópolis: Vozes, 1985.
GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Estampa, 1995. Vol.1.
RICOUER, Paul. Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1994. Vol.1.
SCHUBACK, Márcia de Sá Cavalcante. Para Ler os medievais: ensaio de hermenêutica imaginativa. Petrópolis: Vozes, 2000.
VIDAL, F. Canals. Historia de la Filosofia Medieval. Barcelona: Herder, 1976.

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